domingo, 18 de novembro de 2007

O sabor da Velhice

Confesso que não gostava muito de autores brasileiros. A razão deste “desgosto” não era muito fundamentada, nem objectiva. Os autores cristãos que tinha lido em jovem, eram demasiado fundamentalistas, com posturas doutrinárias rígidas, princípios morais incompreensíveis. Desvalorizei-os ainda mais porque, lê-los, era desaprender o meu português que eu queria correcto e fidedigno...
Passaram anos...

Curiosamente agora, já adulta, apaixonei-me por alguns. Na realidade encantei-me pela afirmação dos seus ideais e, só depois reparei que eram brasileiros. Um deles é Rubem Alves. Pelo nome, pensei que era um jovem. Ao consultar a sua biografia descobri que era/é um sábio…um velho sábio. Teve formação religiosa protestante e isso transparece na sua postura de vida, na sua estrutura como pessoa, embora não pareça seguir regularmente nenhuma confissão religiosa. Rubem, com formação filosófica, é, para mim, um pensador encantador porque rompe com a filosofia tradicional e mistura nela todos os seus próprios pensamentos com os seus conhecimentos teológicos, psicanalíticos, expressando-se com uma sabedoria fascinante, de um velho de 73 anos, aposentado, sem emprego a marcar-lhe o ritmo dos dias. Aposentado mas não de ser gente, porque poderá dizer como Vergílio Ferreira -“Sinto que há gente dentro de mim, o corpo habitado!”
É sábio porque em vez de ir vivendo, ele vai “degustando” a vida, procura frui-la e, ao invés de juntar saberes, junta sabores, com prazer e alegria. Os conhecimentos podem dar-nos meios para viver mas, a sabedoria é que nos dá razões para viver, porque ela é um conhecimento saboroso.
Por outro lado ele considera que é necessária coragem para se exprimir o que realmente se pensa e, a velhice é essa idade por excelência. E é com essa coragem que ele critica o nosso mundo consumista virado para o
utilitarismo vincado e exagerado, uma sociedade em que a inutilidade é uma palavra assustadora. O sociólogo Alvin Couldner refere que no mundo burguês as coisas e as pessoas são valorizadas em função da sua utilidade. Rubem recorrendo aos pensamentos de Santo Agostinho refere que no mundo há dois espaços (lugares), o das utilidades e o da fruição. Devemos misturá-los ao longo da vida.
Mas, falar para um grupo de velhos aposentados será falar para um grupo de inúteis? (inútil no mau sentido da palavra) Essas pessoas estão aposentadas, perderam a sua utilidade social, pois deixaram de ser usadas como ferramentas, deixaram de ser produtivas. E, na nossa sociedade o que não tem uso é para por fora, tal como um filtro com borra de café, uma lâmpada fundida, um guardanapo de papel sujo…e essas pessoas, serão lixo social?
Mas, será que a vida se justifica por aquilo que produzimos?Então para que serve uma sonata? Um quadro? Um chocolate? Um concerto? Um poema de Fernando Pessoa? O perfume do jasmim? Uma boneca? Um papagaio de papel? Um palhaço? Um beijo? …Não servem para nada!...dão-nos prazer e alegria. Brinquedo e arte são inúteis porque são fins em si mesmo. Saborear e degustar são experiências amorosas para além da objectividade da ciência, da utilidade e da técnica.
Mas, como o que não é científico é desvalorizado e pouco credível, então até na Educação foi retirado o amor para que ela entrasse no grupo das “utilidades”, como processo objectivo de ensino-aprendizagem.
Eu concordo com Rubem, de que os velhos estão sob o domínio da
graça e não sob o domínio das obras. Curiosamente esta dicotomia dividiu Protestantes e Católicos. Segundo o pensamento católico, Deus valoriza as obras como meio de se obter a salvação e alcançar o céu. O Protestantismo veio romper com essa ideia utilitária e valorizar a graça de Deus. Deus ama porque “é Amor”, sem contabilidade de obras. Ser velho é viver a graça da fruição e da inutilidade e ter a maravilhosa lucidez para valorizar o essencial. Nesse sentido, a velhice é um tempo de sabedoria. Rolland Barthes saudava a velhice como um tempo de recomeço…vivendo numa alegria estrutural a que eu chamo de felicidade (não de alegrias assentes em momentos fugazes).
Mas, muitos acharão a aposentação uma infelicidade porque não se consciencializaram para esse momento, como que caíram nele em queda livre…e, ficam à espera da morte. E, as doenças? Muitas vêm para ficar! Há que encetar uma convivência com as doenças, lembrando-nos que elas até nos podem despertar sentidos e suscitar novas visões e criações. Verdade!...
Acima de tudo nunca perder a capacidade de nos deslumbrarmos perante a beleza, de nos comovermos, de viver o essencial. Essencial é fruir o que é para ser saboreado e comido por prazer e não por função nutritiva. Deus estará nessas fruições mas, não será o único, por isso Ele colocou no mundo uma infinidade de beleza, porque Ele quer a alegria dos homens. Tal como Rubem acredito que a beleza e a alegria são divinas.

O sabor da velhice pode ser um privilégio.

Raquel Alves

(foto de meu pai, um homem que sabe envelhecer... )

3 comentários:

Rosa Silvestre disse...

Olá Raquel, um excelente texto que nos faz reflectir acerca do sabor da velhice. Quanto ao postar pouco no Criancices, na verdade não tenho grande disponibilidade para postar como quero....enfim vida cheia, estudos, profissão, filhos,marido....e algumas chatices da vida como não poderia deixar de ser.
Obrigada pela visita ao meu cantinho. Bjs, RS.

Anónimo disse...

Uma excelente ode à idade madura. Concordo pelnamente com as suas palavras e apenas lamento que os idosos não sejam tratados, no nosso país, com a dignidade e o respeito que merecem.
Beijinho e boa semana

tsiwari disse...

Tive a felicidade de viver mais de 20 anos com alguém que neste último Dezembro, a um mês de completar os 100 anos, se despediu, calmamente, de todos nós.

Por isso, sei que é mesmo um privilégio.

***